eu conheci o feminismo na internet, aos 12 anos de idade, a partir de uma amiga do colégio do meu irmão.
ela postava reflexões poderosas no Facebook, sobre desigualdade de gênero, que iam desde diferença salarial até o polêmico padrão de beleza da depilação.
já nessa época, eu discutia nos comentários dos posts do quebrando tabu, sobre o direito da mulher de se depilar ou não. e homens adultos me chamavam de “feminista do suvaco peludo", enquanto eu esbravejava sobre o quanto eles eram machistas.
mesmo assim, foi diferente quando os pelos começaram a nascer no meu corpo. a minha primeira reação foi de usar agasalho o tempo todo, não importasse o calor que fizesse.
os meninos da minha turma faziam questão de comentar e acompanhar o crescimento do pelo do corpo das meninas e meu maior medo era ser alvo de comentários.
foi em algum final de semana, quando minha mãe tinha tempo para passar com a gente, que ela percebeu que meu corpo estava peludo:
“meu deus, minha filha! os outros devem achar que você não tem mãe! tadinha. vem que vou cuidar de você"
queria eu ter conhecido a gilete naquele dia, mas minha mãe na tentativa de fazer tudo certo desde o início, me apresentou ao satinelle: um aparelho de depilação composto com várias pinças que puxavam os pelos um a um simultaneamente, de forma extremamente dolorosa.
eu aprendi desde novinha a suportar a dor de passar esse aparelho diabólico por todo o meu corpo. as vezes sentia um pequeno enjôo quando passava muito tempo sentindo dor, então tinha que parar até me sentir bem de novo para continuar o processo.
era comum quando, ao tentar caçar os pêlos mais fininhos embaixo do meu braço, o aparelho se enroscasse na pele e me cortasse. e então, os adultos me aconselhavam a passar maisena pra aliviar a dor do corte, que era insuportável e me acompanhava durante dias.
lembro a sensação horrível de vestir a mochila do colégio com as axilas cortadas, principalmente quando o corte formava casquinhas. mas pelo menos estavam depiladas, né?
minha mãe costumava se gabar pra minha tia dizendo que eu era muito resistente a dor e que eu até conseguia passar o satinelli nos braços, uma das áreas mais doloridas. eu recebia elogios pela depilação e eu gostava disso.
afinal, mesmo que me causasse muita dor, esse pequeno objeto de tortura me foi apresentado como sinal de afeto da minha mãe
“vem que vou cuidar de você"
e, ainda por cima, me livrava dos comentários maldosos dos meninos da minha sala.
um certo dia, no meio de alguma crise adolescente que não me lembro qual, fui negligente com a depilação do meu corpo e, antes de um banho, minha avó me viu com as axilas cheias de pelos.
eu lembro perfeitamente da cena dela correndo atrás de mim com uma gilete até que eu me trancasse no banheiro chorando, porque eu não queria me depilar.
mas ela insistia ferozmente que aquilo precisava ser feito naquele momento e tentava, em vão, me apresentar a gilete como uma solução menos dolorosa.
mais tarde nesse dia, a minha avó também chorou enquanto contava do ocorrido pra minha mãe. ela disse que só estava tentando cuidar de mim e que eu tinha sido mal criada.
foi a primeira vez que eu vi a minha avó chorar por minha causa e, sinceramente, acho que doeu mais do que seu tivesse me rendido a depilação quando ela pediu.
eu conheci o feminismo aos 12 anos. mas hoje aos 22 anos, o feminismo faz parte de praticamente todos os conteúdos que eu consumo.
desde podcasts a artigos longuíssimos e conceituados explicando sobre cultura da pedofilia relacionada a depilação.
já sou grandinha e entendo como o padrão de violência contra o corpo feminino foi passado de geração em geração, da minha avó pra minha mãe e da minha mãe até chegar em mim.
mesmo assim, eu sigo uma agenda criteriosa de depilação a laser de uma empresa que eu descobri depois que usa como argumento publicitário "tenha a pele macia como a de um bebê" (bizarro)
na minha última sessão, enquanto estava deitada na maca, completamente nua e com os olhos vendados - para proteger a retina do laser - a depiladora me disse casualmente
“sorte a sua ter tanta resistência pra dor, assim sofre menos"
e eu respondi “é, que sorte"
nossa lita, você escreve tão profundamente que eu nunca imaginaria que você tem 22 anos… sinto muito por isso, sinto muito por mulheres que vieram depois de mim precisarem passar pelas coisas que eu passei. tenho uma irmã de 18 anos e só consigo te ver assim desde que li seu primeiro texto, como alguém que eu, como mulher, deveria proteger de passar as coisas que todas nós acabamos passando. vendo as suas reflexões no fim, fico feliz que você agora possa cuidar também das que virão ❣️
eu tenho uns anos a mais que você e eu jurava a minha geração ia ser a última a sofrer com isso. mas sei lá, sou old millenial e a gente cresceu com aquela impressão de que as coisas só mudam pra melhor, o que a gente sabe hoje que não é verdade.
como você compartilhou uma história tão íntima, eu vou compartilhar outra história em troca: quando eu tinha 12 anos, lá no século XX, os meninos também comentavam sobre os nossos corpos. e assim como você, eu também passei um ano inteiro indo pra escola de casaco. mas o que eu não esperava era que no fim de uma aula, naquela confusão de crianças arrumando a mochila para ir embora, um menino da sala chegou bem perto de mim, apertando os olhos. depois um tempo olhando fixamente pra mim ele olhou pra trás e disse para uns meninos que estavam mais perto da porta da sala: "ela tem mesmo bigode".
desde aquele dia eu fiquei 100% obcecada em tirar os pelos do meu rosto. eu tive então a excelente ideia de pegar o satinele da minha mãe (que era meio antigo, ela tinha comprado em algum momento dos anos 80 e no lugar daquelas rodinhas de cerâmica tinha uma mola de metal) e tentar tirar meu bigode com ele. como ardeu bastante, eu fui na geladeira e peguei um cubo de gelo para tentar fazer aquela dor parar, mas o que eu fiz na verdade foi queimar a minha pele e - adivinha? - fiquei por um tempo com uma mancha no rosto que parecia um bigode. acho esse período dos 12/13 anos a pior fase da adolescência. a melhor coisa da adolescência é quando ela acaba.
hoje em dia eu também faço depilação a laser. dói, mas a gente aprende a lidar com a dor de um jeito meio estranho né. enfim. eu queria muito que as nossas gerações não passassem nossos traumas pra frente, mas eu tenho certeza que nesse exato momento, em algum lugar, tem uma menina de doze anos tendo uma péssima experiência na primeira depilação.